sábado, 30 de janeiro de 2010

ARQUITETURA DO DESFAZIMENTO

E no instante
do Grande Silêncio
inventariamos o nada-
reboco de parede,
espessura de musgo-,
restituindo ao vivo
o despropósito
de existir.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

ESCRITAS

Em um poema famoso, Emily Dickinson refere-se a alguém que morreu pela Beleza e a um outro alguém que morreu pela Verdade, num encontro tumular,por assim dizer.Com isso a poeta afirma que tanto Beleza quanto Verdade são a mesma coisa.Todavia,melancolicamente podemos concluir que tanto por um caminho quanto pelo outro o resultado também é o mesmo:a morte.
No admirável romance de Virginia Woolf intitulado AS ONDAS,o mundo e a vida são descritos com extrema sensibilidade e beleza.O nascer do dia,uma teia de aranha,um besouro que passa são dignos de nota,reflexão e deleite.No entanto,a presença constante da morte e uma tristeza persistente ao fundo marcam toda a narrativa,projetando certa sombra ao redor de tudo o que existe.Dos seres humanos,principalmente.
Uma outra obra extraordinária,que vai ainda mais fundo na questão do Belo é o livro do escritor japonês Yukio Mishima: O TEMPLO DO PAVILHÃO DOURADO.Nele,o centro da narrativa é a relação da personagem principal com a beleza que tal templo evoca.O sublime desconcerta,fascina,atrai e,sobretudo,perturba.Tanto que incita a uma tentativa de destruição.Talvez a inalcançabilidade daquela presença desperte tanto veneração quanto horror.
Isso nos leva a pensar em como a literatura contemporânea trabalha essa questão.E a resposta,por certo,deve ser tão complexa ou até mais do que as mencionadas anteriormente.Se a partir de Baudelaire optou-se preferencialmente pelo feio,no século XXI cabe realizar-se um sério estudo a respeito.

AUTOR CONVIDADO

O poema Náutica com dedicatória para Olga Savary é de autoria de LUIZ OTÁVIO OLIANI,poeta do Rio de Janeiro que tem dois livros publicados: Fora de Órbita e Espiral.Além disso, ele possui textos publicados em mais de quarenta antologias e já recebeu mais de cinquenta prêmios literários.

NÁUTICA

navego
em tua essência


mergulho nos seixos
que te habitam
mas não naufrago

o mar nos pertence

domingo, 24 de janeiro de 2010

CONTO

CIDADES

Cidades são diversas.Cidades são diferentes.
Algumas,por exemplo,são muito antigas.Outras,recentes.
De uma cidade a outra,há uma longa linha a ser percorrida.
Cidades são dois pontos.Mas.pior que paralelas,nunca se encontram.
É o que pode ser constatado quando,numa delas,pela manhã,é encontrado o corpo de um caixeiro-viajante,enquanto,na outra,oferece,ele,suas mercadorias.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Da série CARTAS IMAGINÁRIAS

CARTA DE LAO-TSÉ PARA CONFÚCIO

Ordenar o mundo é imprescindível;ordenar o sonho,arte.
O Caminho não admite adjetivo,sequer substantivo.
Não se trata de optar pela pedra ou pela nuvem,mas acolhê-las.

MITO DE CASSANDRA


Dito foi.Mais uma vez
e outra.Não bastou.
Nem profetizar preciso.
Basta ter olhos,como Tirésias.
Mas não veem nem ouvem
os homens.Falar não sabem.
Lascivas são suas línguas.
Dito foi e tanto, que confundida
tornou-se toda pronúncia.
Babel e monólogo,o homogêneo
inverossímil.Nem os criptógrafos
decifraram-me.Mais feliz
foi a esfinge.E o que havia
para ser entendido.Mínimo
deveria ter sido o esforço,eis
a chave.Bastaria.Ninguém
ousou.Do simples não se extrai
o sumo,dizem.



quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Da série CARTAS IMAGINÁRIAS

CARTA DE LI PO PARA A LUA
(antigo poeta chinês)

Contemplo a imagem sobre o lago,só um reflexo;iludo-me dizendo a mim mesmo "é ela,a própria;alcancei-a."Quem diria.
Na noite seguinte retorno ao mundo líquido,saudoso de sua luminescência e,inacessível,lá do alto,assombra-me o seu fantasma enquanto insinua "és tu o verdadeiro espectro."
Silente,ao recolhimento torno,consciencioso de que só em sonho tocarei seu âmago de precioso jade.

ENCONTRO

A ave,quando canta,
não se manifesta,
apenas anuncia
o polir da sua aresta.

Seu cantar aguarda
o que ela anuncia:
encontrar o modo
como principia.

O som emanado
por certo resguarda
o breve diàlogo
que a move e retarda.

VERBO

Na boca brota
amarga erva,
fecunda horta
de transtorno e treva.
Saliva -a semente-
e voz -raiz-
despertam o dormente
que cala e diz.
Vinga o sustento
de toda pronúncia:
reter o alento
de ar e astúcia.
Erva e amargo
o ruminar não encerra,
é de tal travo
que se ara a terra.