segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

CONTO

CIDADES

Cidades são diversas.Cidades são diferentes.
Algumas são antiquíssimas.Outras,recentes
De uma cidade a outra,há longa linha a ser percorrida.
Cidades são dois pontos no mapa.Mas pior que paralelas,nunca se encontram.
É o que pode ser constatado quando,numa delas,pela manhã,é encontrado o corpo de um caixeiro-viajante,enquanto,na outra,oferece ele suas mercadorias.





sábado, 28 de dezembro de 2013

CONTO FANTÁSTICO

RETORNO

Era preciso trazer o menino de volta.Se não conseguisse,ao menos deveria vê-lo,abraçá-lo um momento e dizer “ Eu vim”.
Por toda parte pessoas estendidas na terra,algumas enterradas até a cintura,nuas.Gemendo,clamando.
Olhei aquele horror e resolvi que iria.
Teria de atravessar por entre elas,suas medonhas deformações,tentando conter a repulsa.Não havia outra maneira.Se quisesse chegar ao meu destino,teria de enfrentá-las.
Talvez fosse melhor recorrer ao auxílio do cão Ulisses. Poderia ser o seu guia.
Chamou-o.Ele logo veio.Buscando coragem ou impulso,iniciou a travessia.
As pobres criaturas estenderam braços,agitaram mãos,aflitas,atônitas.Pareciam implorar,raivosas.
Foi evitando-as,tentando ignorá-las.Mal podia suportar tanta corrupção e fedor.Putrefactas,muitas delas tentavam mordê-lo,de algum impedi-lo de continuar.
Confiando na capacidade do seu guia,ele chegou a baixar as pálpebras,deixando-se levar.Se parasse,perdido estaria.Seguir,seguir em frente.Era o que restava.
Foi um longo caminho até chegar à criança.Praticamente aprisionada pelas monstruosidades se encontrava.
Assim que o viram,atacaram de imediato.
Uma cruel luta,terrível combate teve início.Não havia como evitar.
Ao abraçar o menino e envolvê-lo em seus braços pôs-se rapidamente em marcha para poder retornar.Tinha certeza de que a volta seria ainda muito mais difícil.
Arriscava.
Então caiu a noite e tudo escureceu.






sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

CONTO

O ESPELHO

Dentre todas as pessoas daquela festa, sem dúvida Jonathan era a mais solitária. Talvez fosse pelo nome esquisito.Ou pelo fato de sua mãe não ter um marido.O caso é que ninguém mais olhava como ele.Seus olhos continham uma luz nunca refletida em alheios olhares.
Transbordando de convidados,inchada parecia a casa,invadida por tantos seres inquietantes:uma tia de chapéu (fato intrigante por si só),crianças rechonchudas (pareciam-se com antigas bonecas),uma prima de olhos verdes (a mais significativa de todas).Entre incomuns vestidos e barrigas salientes,ele caminhava quase sem destino.Apenas quase.Inquietava-o a presença da prima.
Passou a persegui-la por toda parte,tentando provocar um encontro,uma conversa.Escorregadia,evitava-o.Insistiu.
Tinha de conseguir.Sabia não se tratar de teimosia,conquista ou egoísmo.Simplesmente precisava realizar o contato.Algo impulsionava-o na direção dela,uma espécie de chamado,de fatalidade.
Nada mais o interessou.Passou a ignorar parentes e convidados.Nada tinha o menor significado ou sentido.Era como se somente ela existisse.
Não estava apaixonado.
Poderia dizer tudo o que aquilo não era.Apenas não poderia definir em que consistia.
Pouco se importava se os outros haviam percebido alguma coisa ou o que pensariam a respeito.Precisava,
A velha atração entre primos poderia alguém dizer.Riria muito diante de tal afirmativa.
Quase ao final da comemoração,enfim conseguiu.Traiçoeiro,pegou-a de surpresa.Ela,no susto,olhou-o por um átimo de segundo.Foi o suficiente.Ao contemplar aqueles olhos,imediatamente soube o que deveria fazer.
Foi até o antigo espelho oval da sala e encarou-o.
Ali estava.Tão velho quanto o mundo.
Intimamente sorriu.
Há muito e muito esperara por tão inaudito momento.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

VIDA

a palavra,a pedra,o gesto,
o ato intrínseco de existir
diante das coisas e das formas,
o arranjo de expirar após o enigma,
o vociferar das estruturas e do anônimo,
o respingar do diafragma do instante

vida
sempre adiante
daquilo que anuncia
prenunciando
a aurora,
vaso comunicante
do agora

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Natal

Votos de Feliz Natal a todos.Deixo aqui o meu agradecimento aos leitores do Brasil,Estados Unidos,Malásia,Rússia,China,Alemanha,Portugal,Ucrânia,Polônia e aos leitores dos demais países.

sábado, 21 de dezembro de 2013

HISTÓRIA

AQUI

Um tão comum caminho não poderia apresentar tamanho inusitado.O fato é que apresentou.Nada se destacava ao redor,nenhuma beleza ou feiúra,nenhum aspecto particularmente intrigante. Ele passava pelo local todos os dias,assim como o vizinho mal-humorado,a mulher das compras (sempre a carregar sacolas),o menino estrábico e todos os demais.Em nenhuma das vezes algo de extraordinário aconteceu.Até o momento em que parou.
A causa de sua parada sequer para ele ficou clara.Todavia,paralisado tornou-se,fitando,à espreita.Então seguiu em frente como se nada houvera,sem lembrança alguma.No dia seguinte,o mesmo se deu.E assim sucessivamente,sempre no mesmo ponto.Chegava,parava,ficava.Pasmo por nada.
Se alguém o interrogasse,não saberia dar nenhuma resposta e até negaria o acontecimento.Apenas uma lacuna restando,espécie de amnésia,nenhuma condição teria de saber a respeito da irresistível atração.
Sim,porque atração era.Não a do tipo tantalizante,mas a de um ímã,natural.Passava por ali,quedava-se por um átimo,seguia o caminho.Tratava-se muito mais de um desacontecimento do que de um acontecido.
Aos poucos os vizinhos começaram a notar,embora ainda sem dar muita importância.Mas quando as repetições ficaram cada vez mais frequentes e observaram o ar de total alheamento do outro,a inevitável cara de coisa alguma misturada ao nenhum,inquietaram-se,alvoroçados.Não era possível.Algo estava se passando e não podiam atinar em que consistiria.
Já, ele, nenhuma percepção das reações alheias teve.Mantinha a vida como deveria ser,ou ao menos como todos achavam que era,acreditava.
Numa das manhãs,sutil diferença alterou a estranha rotina.
Tendo chegado ao ponto de referência,estacou,mudo.Olhou ao redor, a paisagem,o horizonte.Perdeu a noção das horas.Desabou braços,desfez a postura do corpo,arriado.Reteve a respiração,suspiro.Vasculhou as quatro direções,todo o quadrante.Apurou vaga sensação a dominá-lo.Endureceu a retina,extático.Não havia mais escapatória.
Soube,de modo irremediável,da gravidade da situação.Soube,com a maior exatidão,qual era o caso. Soube.
Nunca mais passou por ali.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

CONTO

A ARTE DO ÓBVIO

Deu a volta na chave e se virou,encarando o jardim.E então viu o jardim.Havia tantas f lores ali como nuncas reparara antes.havia também o sereno da noite.E o suave rumor dos insetos.espantado,ficou imóvel por um momento.
Esqueceu o compromisso inadiável e respirou fundo.
Naquela noite ficaria.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

INSPIRAÇÃO

Invoquei
as musas,
vieram abelhas.

Tudo certo

O pólen das palavras
é o mel do poema.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

CASA DE PENHORES

Penhoro
os sentimentos.

Ela paga
todas
as contas
do meu coração
em dia.

LEITURA

.
depois
do ponto final,
o poema
começa

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

AUTOR CONVIDADO

O poema a seguir é minha tradução de poema de autoria de ELIZABETH E. CASTILLO.Ela é escritora,jornalista e blogger das FILIPINAS.Já publicou artigos e poemas em jornais e revistas. Participou de 30 antologias poéticas internacionais(Estados Unidos,Reino Unido,Canadá,África e Índia).É membro da Associação Americana de Autores.Já tem livros publicados e recebeu prêmios literários.

MINHA ADORADA

ardente chama inicial
capturou este coração solitário,
sinto você perto de mim
ainda que um oceano nos separe,
ansiando,aguardando,esperando
mais do que emoções,esta mútua paixão.

altos e baixos temos conquistado,
tubarões tentaram morder nossos pés,
ainda assim escolhemos nadar
neste mar de amor onde só nós dois estamos,
minha adorada,na terra dos meus sonhos,
uma jovem é varrida de seus gentis braços.

o jeito é amar você.Respiro a cada segundo
estando longe de você,não é empecilho
para construir nossos castelos no ar hoje,
vendo todos se tornarem realidade rapidamente,
apenas tolos diriam o quanto isso é difícil,
sendo melhor deixar àqueles que não sabem esperar pelo amor verdadeiro.

olhe como fazemos isso através
do vale das tempestades e turbulências em nosso voo,
em cada segundo que passa você está lá,em minha mente,adorada,
simplesmente não podemos deixar um ao outro,nos despedaçaríamos se ousássemos,
mas o amor ainda cresce forte e o fará através
de todas as tempestades climáticas e daquilo que acaso der errado.

domingo, 15 de dezembro de 2013

CONTO 3

COMPRA E VENDA

Tendo constatado a chegada da revendedora ,correu até a casa ao lado.

-Não,não foi por acaso.Vim conferir os potinhos de plástico.- avisou logo de chegada.

-São embalagens hermeticamente fechadas de última geração-corrigiu a revendedora.

-Vou ficar com as de doze e noventa.-disse a dona da casa,acostumada com as súbitas invasões da outra.

-Pois eu quero as de cinquenta.Vocês já sabem: sempre fico com as mais caras.-anunciou a vizinha.-Devo até as calcinhas,mas tenho de ficar com as mais caras.

-Acho que vai chover.-falou a revendedora.

-E desta vez não posso dar carona.O carro foi para o conserto.Nem posso ligar.Acabou a bateria do meu celular e ainda está carregando.Ainda por cima,estou sem um mísero guarda-chuva.Ou seja,hoje estou sem nenhum recurso.Praticamente pelada.-gritou a vizinha,

-Meu marido chega daqui a pouco.Pode te dar uma carona.- falou a dona da casa.

-O MEU marido eu não dou,nem empresto,nem vendo...- a vizinha deixou bem claro,olhando incisivamente para a revendedora.-E eu quero uns potes maiores.Detesto coisinha mixuruca.Os meus tem de ser os maiores de todos.O que é meu sempre tem de ser maior.Adoro coisas enormes!

-Podia ao menos disfarçar.-resmungou a revendedora,azeda.

-Mas acontece,queridinha,que eu sou IN-VE-JO-SA. A falsa aqui é você.

sábado, 14 de dezembro de 2013

CONTO 2

LEITURAS

O escritor se aproxima da mulher no saguão do aeroporto:

-Desculpe,mas não pude deixar de notar que a senhora está há horas lendo esta obra,que deve ser fantástica,tamanho é seu interesse.Poucas vezes vi tanto entusiasmo numa leitura.A senhora,lê,relê,volta as páginas diversas vezes,anota...Parabéns!

-Imagina,o que é isso,obrigada!É que não dá mesmo para resistir.Este catálogo é simplesmente maravilhoso!Tem de tudo!A gente anota os pedidos e eles enviam os produtos para a casa pelo correio!Não é genial!E a gente pode encontrar aqui os últimos lançamentos!Tem desde todo tipo de potinhos de plástico para a cozinha até removedor de pelos para o nariz e orelhas.Realmente coisa de gênio!

-...........

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

CONTO

DES - ENCONTRO

Aquele foi o único encontro que tiveram.O primeiro e último de suas vidas.Não foi um encontro romãntico.Ele não derrubou sem querer os pacotes que ela carregava.Ela não o convidou para tomarem chá juntos.Ele não estava querendo encontrar uma namorada.Ela não estava precisando urgentemente de um namorado.Eles pensavam em trabalho ou em tarefas a serem cumpridas ou em compromissos inadiáveis.Eles apenas pararam diante da mesma vitrine.Ele,para ajeitar o cabelo com o auxílio do próprio reflexo.Ela,para sonhar com um aspirador de pó novo. Então seguiram o caminho.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

CONHECIMENTO

Redimensionar mundos
em novas órbitas
e diferentes hemisférios
é mais que projetar lunetas,
reconfigurar geometrias,
é esculpir o som do silêncio
nas crostas do impensado,
é abrir o olho ocluso
dilatando a pupila do entendimento
num ver que desonera
circunferência e curvatura,
retina a desinstalar o real,
pétala que desconfigura
a anatomia da flor,
arte de rastrear o raro
em singular vocabulário,
pedra de toque do abismo,
quadratura do círculo,
enigma a desvincular o vínculo,
constelação de buracos negros
na gematria do Universo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

BIBLIOTECA

Há anos
espero encontrar
o livro
de magia e encantamento.

Enquanto isso,
vou consultando
o velho
caderno de receitas
da minha avó.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

COLA

A língua portuguesa
lambe
o selo
do envelope do poema.

sábado, 7 de dezembro de 2013

AUTOR CONVIDADO (DR. Ampat Koshy)

O autor convidado de hoje, Dr AMPAT KOSHY,da ÍNDIA, é crítico,poeta,editor,contista,pesquisador,ensaísta e professor universitário.Esta´é minha tradução para o seu poema Pura Yoga.

PURA YOGA

Sempre pensei que cada célula do corpo
é capaz de sentimento.
Somos portas para o Desconhecido.
Quando nos invertemos
e voltamos os pés para o céu
e mãos para a terra,
abrimos fissuras de fogo
para as profundas
águas,janelas para as estrelas.
Fazê-lo é estar em sintonia
com o orgasmo da matéria
e alinhados
com a energia do amor.
Meu amor,nunca te vejo
plenamente enquanto ser
em minha cabeça
em pura união
de entendimento.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

RESENHAS

Fui aprovado na seleção e ,a partir de agora,escreverei resenhas para The Criterion Journal.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

AUTOR CONVIDADO

O poema a seguir é uma tradução que fiz do original de autoria do jovem poeta indiano Samarendra Patra.Ele cursa Engenharia Mecânica SRM University.Já escreveu mais de 4oo poemas em três idiomas:inglês,hindi e odia.É o primeiro Embaixador da Poeisa Jovem da Índia.

EU SOU MALALA- e subirei bem alto


Através do quebrado vidro vejo
Répteis de discriminação,
Terrores se multiplicando,
Asfixiante nuvem de fumaça,
Aves livres em absoluto silêncio.

Como somos tolerantes!
Linhas do arco-íris sendo dilaceradas,
Mãos sujas despejando pó na madrugada,
Negras máscaras dificultando a luz da educação,
Armas e balas salvaguardando más ações.

Você pode me entorpecer agora,
Eu posso morrer a esta altura,
Mas jorrarei avante nas marés,
Permanecerei como símbolo de coragem.

Oh,meus compatriotas,
Deixem-nos acender as lâmpadas juntos,
Deixem os barcos do conhecimento navegarem em todos os oceanos,
Deixem todas as asas alcançarem o céu,
Deixem-nos cantar cada segundo.
Sim! Eu sou Malala - e subirei bem alto.


IDENTIDADE (conclusão)

Resignei-me à rendição.
“Extorquir”,veio à mente.Fosse quem fosse,queria roubar,obter o material por mim recebido.Voraz leitor,queria tudo para si,tornar-se dono,proprietário de cada fragmento que eu recebera,em egocêntrica voragem.
Reagi.
A certeza de jamais ceder, de resguardar e preservar com o maior dos cuidados cada fragmento obrigou-me a tomar uma atitude.
“Terá de lutar primeiro” respondi, provocativo.
Entendendo, aumentou a criatura o rigor do ataque. Ela faria de tudo para alcançar seu propósito. Esmagador,ansiava por alcançar rapidamente o maior êxito.
“Devo ter enlouquecido”, ainda pensei antes de agir.
E em seguida:
“Farei”.
Disposto a enfrentar, suportando as conseqüências, estava. No limite das forças, teimava em resistir, superar-me, ir além. Não iria muito longe.
Uma intervenção ocorreu.
Retornara o anjo, intercedendo por mim, o demônio enfrentando. Tríplice embate se fez. Homogênea e heterogênea força em caótica fusão trouxe igualmente tríplice resultado, divergente.
Repelido, para trás a terrível criatura projetada foi, entre urros desaparecendo. Atraído, para o alto seguiu meu benfeitor. Para baixo precipitei-me.
Tudo acabou.
Silêncio.
Abri os olhos.
Na casa encontrava-me. Recuperando aos poucos a noção das coisas, busquei pelo menino.Precisava muito ter um contato com ele.Redescobrira-o.
Tive um choque.
Ele jazia ao meu lado, imóvel.
Num salto, segurei-o, tentando ajudá-lo. Inútil.
Quedei-me, sem reação, pasmo. Simplesmente não sabia o que fazer. Fiquei sentado, sem conseguir atinar em nada.
Então, num impulso,apanhei os papéis que ali se encontravam,começando a dispô-los aleatoriamente. Súbita inspiração envolveu-me. Refiz a sequência,colocando-os em círculo.Só aí aconteceu o sentido.
Maravilhado, percebi que aqueles rabiscos que antes me pareceram desprovidos de significado, formavam uma espécie de mapa. Um mapa cósmico, contendo o mundo físico, metafísico e ultrafísico.Conseguia lê-lo com a maior clareza,com inacreditável facilidade. Completo, continha a imagem do Universo. Aquele era o trabalho do desenhista.
Ouvi passos. E, com eles, veio a compreensão. Agora, sabia quem ele era. Logo, desvendara quem ela era. Consequentemente,pudera chegar a quem eu mesmo era.
Imediatamente desfiz o círculo de papéis, enrolei-os, fiquei a segurá-los com firmeza.
O meu trabalho e minha luta ainda estavam por começar.


(ESTA HISTÓRIA FOI PUBLICADA NO LIVRO INVENTÁRIO DE DESIMPORTÂNCIAS).

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AQUI

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

IDENTIDADE (quarta parte)

Senti-me livro vivo, incomum pinacoteca, rico e dinâmico acervo de vedado acesso.Âmago do secreto,zelava por todos os Mistérios.Com reverência,cabia-me apenas acatar,aceitar: “Eis aqui o seu servo”,disse.
Sem noção alguma do que fazer com o conteúdo recebido, continuei desempenhando o mesmo papel, tornando-me papiro onde inscritos iam sendo inadmissíveis hieróglifos.
Passivamente permitia tornar-me depósito, museu e arquivo daquela imensa quantidade de caracteres, formas,obras.Arte rupestre,linguagem hermética, disco de Faísto, iconografia alquímica,Flos-Sanctorum,holograma, criptografia quântica,inelegível permanecia.
Uma completa Obra composta de todas as escritas: adâmico ou vattan, devanagari, sumério, bártulo,hitita,ugarítico,etrusco.rúnico,babilônico,persa,sânscrito,catacana,quia-vens,copta,grego,cirílico,latim,todas as línguas da Terra e além, num interminável palimpsesto cujas palavras não haviam sido apagadas.
Pasmo e pleno, arrefeci.
Concluída a transmissão, sem digerir a polpa do fruto que fora oferecido, embora sem poder morder, entrei em êxtase. Só aí pude ver: tratava-se de um conjunto. Este mantinha unidade e completude, cada parte formando um Todo coerente,inconsútil. Continha passado, presente e futuro. Melhor dizendo, sem fim e princípio. Inteiro e ainda por fazer. Possível e inverossímil. Perfeita quadratura do círculo, ASth,Om.
O próprio Verbo.
O Livro da Vida.
Concluída a transmissão, retornado do anterior estado, sem digerir a polpa do fruto que me fora oferecido, novamente senti a presença do ser,enfim compreendendo tratar-se de um Anjo Guardião.Quase fulminado pela exuberância provinda do núcleo dos seus olhos cravados,não diria em meu âmago porque eles já eram o âmago de tudo, mas a me traduzirem,quase recuei,com certo susto , incerto destino.
Tentei antecipar o que viria a seguir, pressentindo a continuidade do processo.Outras etapas anunciavam-se. Desfeita foi qualquer tentativa de despedida.
Vi-me, de fato, impulsionado para trás,sugado até constatar a radical mudança operada no ambiente,a efetuar novo encontro,desta vez muito mais assustador.Transubstanciara-se o belo em horror.
Quem eu encontrava ou encontrava a mim nenhum elemento em comum possuía com a extraordinária presença anterior. De modo simplificado, afirmo apenas tratar-se do seu extremo oposto: um demônio. Complexo ao extremo definir ou ao menos tentar nomear a forma agressiva e hostil em ameaçadora atitude disposta ao enfrentamento,ao ataque.A sanha destrutiva,indisfarçável,vinha em minha direção.Esquartejamento,se corpo físico naquele instante eu tivesse,sem dúvida ocorreria.Dilacerado seria,extinto.
Parecia ter sido transferido do paraíso ao inferno num átimo.
Lembrei-me da passagem: “Fui ,pois ao Anjo e lhe pedi que me entregasse o livrinho.Ele então me disse:”Toma-o e devora-o;ele te amargará o estômago,mas em tua boca será doce como mel”.Tomei o livrinho da mão do Anjo e o devorei:na boca era doce como o mel;quando o engoli,porém,meu estômago se tornou amargo.
Indefeso, assustei-me. Ainda mais intensamente por desprovido de recursos encontrar-me,sem atinar qual o verdadeiro motivo de tanta hostilidade,de ferocidade tamanha,palpável ódio.Nenhum abrigo existindo para cogitar em refúgios.
Poucas possibilidades de obter vitória eu dispunha.
Sem socorro, auxílio,restava-me esperar pelo pior.
Confuso, tentei resgatar leituras anteriores,preparos,cursos realizados,orientações e conselhos.Uma página em branco,tornara-me.Inútil.
Teria de aceitar meu aniquilamento.
Atacou-me a aparição.
“Estou perdido”,concluí.
Preso e esmagado sem piedade, esvair-me muito rapidamente,perdendo energia,capacidades,recursos.Grande e intenso era o poder do inimigo.
Restava a impressão de que um propósito havia, insaciável desejo de extrair cada partícula, sequioso de destruição e inesgotável fome a triturar minha insignificância, drenando para si qualquer resquício e fragmento de minha existência.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

IDENTIDADE (terceira parte)

Detive-me a observá-lo. Inacabável parecia a tarefa.Espantei-me,chegando a acreditar que preencheria todo o chão caso não fosse impedido.Passei a ponderar a possibilidade de um caso de grafomania.Como sequer chegara a aprender o ato de escrever propriamente dito,limitava-se a expelir vagas formas que talvez pudessem ter remoto significado apenas para ele.
Abandonara as afirmações e passara ao reino das hipóteses.
Outra vez perto , aguardei. Caso se confirmasse, representaria algum progresso. Então lembrei que, durante a consulta,manifestara ela uma grande preocupação em interpretar os desenhos.Poderia existir um caminho de acesso até ele,uma porta conduzindo a algum aposento aparentemente esquecido onde o encontraríamos,uma chave.Aquilo me chamara a atenção e fora esquecido por mim.Intuitivamente percebi a importância do fato.Talvez devesse voltar meus esforços com maior cuidado para as inscrições que ele teimava em produzir compulsivamente com enorme rapidez.
Surpreendido fui, repentinamente, por inusitado procedimento.
Tendo concluído a tarefa, sobre as estranhas formas deitou-se, ficando imóvel, em estado cataléptico, mumificado quase. Aparentava ter abandonado em definitivo o inútil corpo e qualquer remoto contato com o âmbito material.
Sem sinais vitais permaneceu.
Idêntica e inversamente, sem qualquer aviso, ergueu-se,encarando-me por um segundo.Um segundo com aspecto de eternidade,de atalho para o infinito. Em seguida voltou ao abrigo e recolhimento de costume, sentado, inteiramente ocluso.
Chocado fiquei, sem entender nada. Desconjuntara-me aquele olhar.
Perdera a capacidade de reagir.
Salvou-me outra vez a intuição. Relativamente bem desenvolvida,podia confiar nela.
Compreendi, sem saber como ou por qual motivo: quem devia deitar-se sobre o desenho era eu.Tratava-se de inquestionável certeza.
Aturdido, demorei a tomar uma atitude. Pouco a pouco assimilando fui a idéia,embora com severa desconfiança a respeito do ridículo da situação.
Fiz um movimento.
Estirei-me.
Cerrando as pálpebras, tragado fui por singular força.
Enxurrada de cores inundou minha mente, intensa, numa variedade nunca vista, singular luminescência,originais tonalidades, substituídas ,com estonteante rapidez, por formas geométricas em profusão vertiginosa:losangos,triângulos,retângulos,quadrados,heptágonos, dodecaedros,icoságonos.Infindáveis.
Senti-me arrastado para algum lugar, atraído de modo irremediável,querendo ir e tentando ficar,resistindo e rendendo-me sem remédio.
Fosforescências luminosas surgiram a seguir, transmutadas em círculos a se abrirem,conduzindo a quadrante específico e definido.
Tratava-se de um Portal.
Compreendi: entrando estava num outro estado de consciência.
Qual, sequer imaginava. Pessoa alguma poderia afirmar com exatidão quantos de fato existiriam. Limitava-me a seguir, ou melhor, deixar-me conduzir, ser tragado por interminável vórtice a lançar-me ao ignoto. O impedimento de continuar foi provocado por desconhecida causa.
Uma barreira, algum obstáculo, manifestara-se. Desprevenido, busquei descobrir o motivo de tal impedimento. Havia um núcleo escuro e denso à minha frente ou ao meu redor, difícil definir. Não precisei investigar para irem acontecendo as insólitas descobertas. O próprio desenrolar dos acontecimentos iam-nas revelando.
Criaturas de bizarro aspecto formavam massa compacta, causando espanto e pasmo.Não se poderia afirmar que fossem humanas nem desumanas, a qual espécie pertenciam; se boas ou más.Existiam.E pareciam estar ali com o único propósito de dificultarem minha travessia ao outro lado do Portal.
Tenso, imaginei se sofreria investidas, ataques, agressões.Teria de defender-me,pedir auxílio,utilizar recursos familiares para evitar danos.Qual atitude tomar ainda vasculhava em meu íntimo.Informações possuía a respeito de riscos e perigos de experiências no âmbito do desconhecido.Em eras antigas muitos morreram tentando mapeá-lo,abrindo o acesso aos demais investigadores e batedores dos planos sutis.Trabalho executado por velhos xamãs,videntes,yogues,santos.Um inacreditável desafio mesmo para os mais experientes.
Outra inesperada descoberta fiz ao ter a percepção aguçada e ampliada. Tratava-se de elementais.O grupo à minha espera consistia deles, seres intermediários, situados entre o mundo natural e humano.Se mantivesse um comportamento adequado,evitaria problemas e desastrosas consequências.Tinha como defender-me.Alívio senti.
Todavia,nova compreensão fluiu,fazendo-me crer que o caso era outro.Aqueles elementais provinham de mim mesmo,de minhas formas-pensamento,dos meus próprios sentimentos alimentados por desejos,impulsos,crenças,ações.Jamais poderia conceber ser eu mesmo a origem e fonte de tantos.Sim,já lera a respeito.Estar frente a frente com fruto do meu viver diário tornava o acontecimento muito diferente.
Para completar a travessia, precisava tomar uma atitude, tive certeza. Lancei sobre eles intensa luz, usando de toda a capacidade disponível, sem atacá-los ou feri-los. Lentamente foram se dissolvendo,amenizando,fluindo.Uns simplesmente desapareceram; outros,suavizaram-se.Abriu-se o caminho.
Atravessei.
Intensa claridade surgiu, expandindo-se aos poucos, trazendo consigo a sensação de leveza e de elevação.Senti-me subir,subir indefinidamente,de modo interminável.Sons semelhantes a notas musicais ressoavam .Tinha a sensação de ser aguardado por alguém e de que precisava realizar alguma coisa,uma tarefa,um desígnio muito importante,decisivo ato .Dependeria de mim o êxito ou o fracasso daquilo que ainda estava por vir.
Qual missão, sequer imaginava.
Floresceu a luminosidade, atrativa ,quase cegante. Não fui mariposa a consumir-se na chama. Do recôndito dela é que foi projetado algo ou alguém. Esperei.
Do interior da radiância, transfiguradora imagem de um ser de inenarrável beleza aflorou. Deslumbrado, perdi toda e qualquer possibilidade de reagir. Incondicional, a rendição.
De imediato senti a conexão estabelecer-se entre nós, elo completo e definido, bem como uma transmissão,como se fosse eu um receptáculo, embora não conseguisse tornar nítida e clara a mensagem. Limitava-me a receber em imensa profusão,ignorando inteiramente o conteúdo.
Imensurável a quantidade.
Símbolos, códigos, figuras depositavam-se em minhas entranhas - se é que se poderia dizer isso-,abundantes,ficando decalcadas,impressas,gravadas em indefinido ponto,ocultas e seladas com o maior cuidado,como se,num Apocalipse ao contrário,cada Selo fosse sendo fechado ao invés de aberto.Muito além de enciclopédia,uma biblioteca inteira era inserida,transposta,transmigrada para mim.