sábado, 29 de abril de 2017

Límpido



   Concentrou-se,o monge, na limpidez da água, uma água líquida,transparente,muito diversa da transparência de vidro de um bloco de gelo, da opacidade das pedras se espalhando pelo solo, da leveza do voo das aves, da delicadeza única das flores. Desta vez,quis ele, encontrar o insano.
   Não foi possível definir a consistência daquela água, a temperatura, não se importou com as folhas caindo sobre,com o escorregadio do fundo,com as brincadeiras do sol e da sombra no aquoso. Dedicou-se única e exclusivamente à transparência.
   Para compreendê-la, precisou evitar os riscos das elucubrações filosóficas e os destemperos da insanidade. Ver o transparente poderia facilmente conduzi-lo a um estado irreversível de loucura ou matá-lo. Muitas foram as armadilhas para chegar a um estado perfeito de contemplação. Ninguém diria que algo tão simples pudesse conter tantas possibilidades falaciosas,tantos riscos.
    Era um grande propósito, havia avaliado. Só não imaginara que gastaria nele  toda a sua vida.
 
 
 
 
 

   

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Poema



Acolher um corpo (insetos,mamíferos) exige gesto.
O anatômico requer condição.
Morrer à míngua,à deriva é só uma face do possível.
Nascer,evacuar,maior esforço.
Um corpo sobre a terra,o percorrer,a sobrevivência do desgaste.
Acolher um corpo ( mamíferos,insetos) exige tato.
É incondicional o amorfo.

terça-feira, 25 de abril de 2017

A Arte do Impossível




Desveste-se o nunca
em outra veste
recoberta pela franca
nudez que a despe.

mesocarpo,miolo,
da matéria,o fundo,
renúncia de solo,
não medo,desmando,

semente da vertigem,
consolo do escuro,
relevo da não-imagem,
corpo do claro.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Resenha

LARANJA MECÂNICA  de Anthony Burgess

   Completando as leituras de romances distópicos, concluí hoje Laranja Mecânica..
   Inicialmente a leitura se torna complexa porque o autor cria uma linguagem própria utilizada pelo seu personagem-narrador, o jovem Alex. Certamente isso exigiu por parte do tradutor um trabalho árduo. No entanto, à medida que os capítulos avançam,vamos descobrindo o sabor dessa linguagem,achando-a interessante e,não raro, com um certa comicidade. Isso significa que o livro nos pegou de jeito.
   Há anos eu havia assistido ao filme de Stanley Kubrick, gostando muito do resultado. Agora achei importante efetuar a leitura do livro,uma vez que também havia me proposto a completar os três :Admirável Mundo Novo,1984 e Laranja Mecânica.
   Posso dizer que realmente vale a pena dedicar o tempo para conhecer obras que fazem uma reflexão a respeito da sociedade,da política,dos sistemas desumanizantes. Algo,aliás,muito evidente neste novo milênio.
    Se George Orwell criou vários neologismos em 1984, Burgess se utiliza de gíria, de sua admiração por James Joyce  e de seu talento com as palavras para causar estranhamento ao leitor, para expressar a linguagem dos grupos juvenis,ou melhor das gangues,com sua e violência exacerbada e suas vidas sem sentido,buscando satisfação na agressividade,drogas,etc. Isso reflete não só o que ele observou em sua época: é muitíssimo atual,pois podemos perceber facilmente o avanço da delinquência, a falta de perspectivas, o bullying,o desinteresse pelos estudos ganharem proporções cada vez maiores.
...A grande questão abordada pelo autor é: seria lícito retirar a capacidade de escolher entre o bem e o mal do ser humano em nome da ordem social,dos interesses políticos, da manutenção do sistema?
   O livro não perdeu seu frescor e sua importância.Pelo contrário, cresceu ainda mais diante da realidade em que nos deparamos diariamente. Aliás,nenhum dos textos mencionados envelheceu. Todos continuam significativos, comprovando o talento dos seus autores.



    
   

sábado, 22 de abril de 2017

Raiz



Calo-me rente às folhas,
também sei ser outono,
impessoal e nítido
quando comungo
o mimetismo das coisas.
Fico,faço,imprimo
as iminências do gasto.

Todos os dias jogam
meu cadáver aos cães.
Inerte ou em construção,indico
minha virulência
em abrir os olhos
às raízes do perigo insondável de existir.

(foto: Cleber Pacheco)


sexta-feira, 21 de abril de 2017

Babel



Ergue-se
a Babel,
alastra-se,
diminuem
as línguas,
intensificam-se
os gritos,
iminente
é o desamor,
a queda,
homens fabricam
caos,
prolifera
o câncer,
século de sangue
na ganância
da morte,
orgasmo da desesperança
no terror
dos cegos.

(imagem: pintura de  Pieter Bruegel,o Velho).

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Paisagem



A nuvem
é a caligrafia da água,
o chão
 é o palimpsesto do tempo,
os olhos alinhavam
os desencontros,
o coração
costura os retalhos.
Nalgum lugar
desloca-se
a paisagem para muito além
de si mesma:
o mundo reverbera
mas nunca se alcança.

( foto: Cleber Pacheco)

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Memória



Escavar
inúmeras camadas
em busca
do testemunho do gelo,
memória da Terra e do Tempo
no coração do frio,
vidro a respirar
metamorfoses e mapas líquidos
  esculpindo
os cristais da existência.
Reparos e danos
refinando
a anatomia das eras
nos domínios do ancestral
e do lúdico.
Arqueologia do gélido
em estertor e fluxo,
confirmando
inconsistências límpidas.
Sereno furor
daquilo que funda
e se dissolve
em agonia e graça.

(foto: Google).






segunda-feira, 17 de abril de 2017

Resenha


1984 de George Orwell.

   Prosseguindo as leituras dos romances distópicos, concluí recentemente o livro 1984 de George Orwell.
   Talvez alguns achem o trabalho  datado ou ingênuo. O fato é que ele chamou a atenção dos leitores recentemente graças aos políticos maquiavélicos.
   Em minha opinião, o texto é mais detalhista do que o romance de Huxley (Admirável Mundo Novo) e difere dele pelo uso da violência. No caso de |Huxley, as pessoas são condicionadas desde cedo a obedecer e nunca questionar. Em Orwell a tortura é um recurso essencial para destruir qualquer rebeldia e remodelar a mente, operando uma verdadeira lavagem cerebral.
   O livro é forte , contundente e possui questões significativas como o duplipensamento e a novafala. No primeiro caso é um recurso para que as pessoas aceitem duas ideias contraditórias ao mesmo tempo. No segundo, há um processo de destruição das palavras e a elaboração de um novo vocabulário com o intuito de evitar rebeldias, pois a linguagem é essencial para a compreensão da realidade. Outro ponto importante é o fato de haver uma contínua remodelação dos fatos históricos,adequando-os sempre às conveniências do Partido,de tal modo que a memória acaba sendo aniquilada sistematicamente,
  Winston Smith,o personagem central, nunca consegue se ajustar ao sistema.E ao apaixonar-se por Julia,intensifica sua resistência aos desmandos de uma sociedade que aniquila o indivíduo. Isso será decisivo para a sua vida e trará consequências funestas.
   Considero a obra muito atual uma vez que este século XXI é uma grande distopia com uma democracia de fachada,mero simulacro a ocultar as garras de um sistema tão cruel quanto o da ficção.
,   Leitura imperdível.

sábado, 15 de abril de 2017

Metanoia



Em morte e vida
transmutar-se,
 tornar-se  todo o possível
a recriar mundos,
agonia e êxtase no instante
onde tudo se encontra e se torna
além do viável.
Choque de luz e trevas
no ápice do agônico
a exultar-se
em abandono e desafio
para revigorar
nunca e sempre
no sacrifício de ser.

(imagem: Rembrandt)

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Instante





A verdadeira nuvem
se revela na estiagem,
já não ilude,
é só passagem;
sem qualquer sumo
é só imagem
que está a prumo.

Sem desolação,desgaste
e sempre avariada,
nem nenhuma haste
e sempre afiada,
é apenas o contraste
da hora condenada,
ainda que lhe baste.

(imagem: Google)

quarta-feira, 12 de abril de 2017

HORIZONTES



Estão gastos
todos os horizontes,
foram roídas
as nuvens,
já não há chuva.

Foram soprados
todos os ventos,
o ar é rarefeito.

Apagaram-se
os sóis, caladas
estão as chamas
e o fulgor abrasivo.

Calou-se o céu
e enviou
as possibilidades do infecundo.

Reparo não há,
restos não fazem
nem recuperam
a claridade do dia.

(foto: Cleber Pacheco)

terça-feira, 11 de abril de 2017

Intervalo


A cicatriz do intervalo
funda novo lugar
no diálogo
entre abismos.

Pausa que repara
a sensatez a fundir
estigmas.

Claridade
a se insinuar
na obscuridade das grotas.

Ver
que se funda
no eterno recomeço
das auroras. 



sexta-feira, 7 de abril de 2017

SILÊNCIO



Quadrado perfeito formado por escadas.No centro,altar.Nos degraus,imóveis monges budistas,sentados.Ao lado de cada monge,uma lamparina acesa.Um jovem descendo os degraus lentamente.Passa,cuidadoso,tentando evitar qualquer perturbação aos monges e às lamparinas.Chega ao centro do quadrado.No altar,uma pedra para ser esculpida.


quarta-feira, 5 de abril de 2017

Universos


Mergulho
na claridade insuspeita
do universo.

Cada portal
em mim escava
um outro mundo

Cada mundo
se abre
para interstícios outros.

Viver é paralelo
a todo legado.

(foto: Google imagens)

.



terça-feira, 4 de abril de 2017

Resenha



   O romance Noite Sem Fim  de Agatha Christie foi originalmente publicado nos anos sessenta.Faz parte,portanto de sua produção mais tardia. Talvez por isso mesmo seja um tanto diferente dos seus demais trabalhos. Desta vez  importa muito mais a psicologia dos personagens do que como o crime foi cometido ou as motivações.
   A história está centrada em Michael Rogers, personagem um tanto ambíguo: um espertalhão ou um ingênuo? Ele mesmo é o narrador de sua história, o que confere à narrativa,por i só,um caráter duvidoso.
   A ação também não está centrada nas investigações,nos suspeitos, Importa muito mais os acontecimentos que antecedem a morte de Ellie,uma rica herdeira americana.
    O texto possui algumas nuances e o seu final é significativo e guarda impacto não tanto pelas revelações,mas pela importância do mergulho no mundo interno do personagem.
    Impossível comentar os detalhes sem estragar a leitura.Então o melhor é ir direto para o contato com o livro propriamente dito.
 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Poema


   Um punhado de restos, as relíquias.
   Quem deteriora sabe a corpo.
   Um corpo nu entre restos, seu elemento.
   Breve encontro sem atritos, só confirmação.
   Quem é resquício sabe a olho.
   Um olho  (os escombros, corpos), reconhece o convite, reunião.




sábado, 1 de abril de 2017

ÍTACA




Em algum lugar no futuro

                             Entre os escombros encontro os degraus da casa. Subo em busca de um esconderijo. Aqui fico enquanto for possível. Até que necessário seja buscar outro. Eis minha errática vida.
                           Um canto para dormir,alguma comida.Água,talvez. O maior luxo que poderei encontrar nestes tempos de total destruição.
                           São três andares conectados por escadas. Ou o que restou delas. Examino as possibilidades. Aproximando-me, observo  detalhes.  A ala norte não existe mais. Percebo a existência de quartos intactos. Uma hora depois,revela-se um verdadeiro tesouro: um compartimento no soalho contendo comida processada. Tenho sorte. Inúmeras pessoas estão em desespero tentando encontrar algum tipo de alimento. Subo até o terceiro andar,o mais instável, e descubro algo totalmente inesperado: uma sala repleta de livros. Alguns deles estão danificados. Hoje em dia quase ninguém mais se interessa por eles.
     Chamo este local de biblioteca. É o espaço ideal para mim,pois contém uma lareira e o mundo se tornou um lugar frio.
    Escolho alguns livros para acender o fogo. Na capa de um deles está escrito:

        OBRAS DE  WILLIAM SHAKESPEARE
         HAMLET- MACBETH- REI LEAR

    Não tenho noção do que se trata.Em nossa era, aprendemos a ler apenas tratados técnicos.  Constato que o volume é grosso. Crepitam as chamas rapidamente.
   Comer,dormir e vigiar. Nossas únicas atividades agora. A única distração é o acaso de termos algum sonho. Na maioria das vezes, porém, afloram pesadelos. Acordo aos gritos.
      Entediado e só, à medida que os dias passam, decido espiar o conteúdo  dos volumes da biblioteca.  Encontro imagens interessantes: pinturas,ilustrações,desenhos. Arranco as minhas favoritas,quero levá-las comigo quando partir novamente. Serão as únicas imagens de beleza que irei ver. Esteja onde estiver.  
    Passados três dias, encontro numa das prateleiras um livro em que está escrita a palavra ODISSEIA. Tentando encontrar uma gravura, descubro: um tal de Homero escreveu aquilo. Parece tratar-se de texto bastante antigo. Percebo ser a história de alguém chamado Ulisses e que ele deseja voltar para casa após uma terrível guerra. Talvez isso tenha despertado o meu interesse.Somos sobreviventes. Com uma diferença: não tenho para onde ir.Ou melhor,duas: não há  Penélope a me esperar.
   Talvez simplesmente tenha me encantado pela ninfa Calipso. Não tenho certeza.
    Junto com meus outros escassos pertences e o restante da comida, coloco a Odisseia. Vou levá-la comigo.
   É hora de seguir em frente.
    Retomo o desolado caminho rabiscado nas trevas. É preciso tomar muito cuidado. Há perigos por toda parte.
   Alguns dias mais tarde,  avisto um grupo sentado em volta de uma fogueira. Arrisco uma aproximação, mesmo percebendo olhares de suspeita.
   Chego, apresento-me, abro o livro e começo a ler a história de Odisseus.
     Naquela mesma noite tenho uma revelação: acabo de criar uma legião  que me seguirá por toda parte nesta era de ruínas.